segunda-feira, 27 de julho de 2020

Breves considerações sobre o jusnaturalismo

"A liberdade guiando o povo", de Eugène Delacroix (1830)
Ao se estudar os direitos fundamentais, é indispensável que se busque na história e na própria filosofia do direito e política a sua origem. Um lugar comum do qual se pode extrair a origem dos direitos fundamentais é o surgimento dos direitos naturais e das doutrinas jusnaturalistas[1].
A ideia de um direito natural nos remete a um conjunto de normas não positivadas que transcendem o tempo e são imanentes à natureza humana. Na antiguidade clássica, Cícero[2]  assim se manifestou acerca da existência de um direito natural:

“A razão reta, conforme a natureza, gravada em todos os corações, imutável, eterna, cuja voz ensina e prescreve o bem (...). Essa lei não pode ser contestada, nem derrogada em parte, nem anulada; não podemos ser isentos de seu cumprimento pelo povo nem pelo senado (...). Não é uma lei em Roma e outra em Atenas, - uma antes e outra depois, mas uma, sempiterna e imutável, entre todos os povos e em todos os tempos; uno será sempre o seu imperador e mestre, que é deus, seu inventor, sancionador e publicador, não podendo o homem desconhecê-la sem renegar a si mesmo...”
        
Por razões didáticas, pode-se se dividir o jusnaturalismo em duas fases[3]. Primeiramente, com suporte nas doutrinas filosóficas de Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino, o direito natural era a incorporação, pelos homens, das leis superiores. Como ensina Bittar (2005, p. 227), fica claro nas concepções de ambos que a lei superior (a divina, para Santo Agostinho, e a eterna, para Santo Tomás de Aquino) emana de uma força sobre-humana, qual seja: Deus.
Hugo Grócio - pintado por Michiel Jansz van Mierevelt, 1631 (Wikipedia)
Rompendo com a ideia de origem divina do Direito Natural, o que Bittar considera uma verdadeira “revolução copernicana na esfera do Direito”[4], Hugo Grócio vem dizer que “o princípio último de todas as coisas não seria mais Deus, nem a natureza, mas a razão”. Nota-se, assim, que a figura divina não mais era o fundamento e a última justificação das normas jurídicas, deixando o pensamento humano de ser teocêntrico para atingir uma concepção antropocêntrica[5].
Para Kaufmann[6], o direito natural da modernidade apenas podia ser um direito natural secularizado, baseado na máxima de que um tal direito teria de valer mesmo na hipótese de Deus não existir.  Essa nova concepção, segundo Bittar (op. cit., p. 228.), “prepara as bases intelectuais da Revolução Francesa (1789), que rompe, de modo definitivo e prático, com a teocracia e afirma, categoricamente, os direitos naturais”.
 Pode-se dizer, então, que a Escola de Direito Natural e das Gentes formulou o pensamento Iluminista surgido no século XVIII e cuidou também da criação de um denominado jusnaturalismo racionalista, imortalizado nos documentos de liberdade (FERREIRA FILHO, op. cit., p. 10-11).
Se, inicialmente, alguns direitos compreendidos como naturais integraram os textos das primeiras declarações, por herança histórica, conveniência ou necessidade, os mesmos foram reproduzidos nas Constituições de países atualmente intitulados democráticos, tais como o Brasil. Tal conclusão pode ser extraída pela simples análise do texto constitucional, haja vista que a mera positivação da dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado implica na confluência entre a Ética e o Direito[7], remetendo às doutrinas exsurgentes no Século das Luzes. Acerca da compreensão do jusnaturalismo e da inserção nos textos constitucionais de “normas” oriundas do direito natural, Sarlet ensina que

“da concepção jusnaturalista remanesce, sem dúvida, a constatação de que uma Constituição que – de forma direta ou indireta – consagra a idéia da dignidade da pessoa humana justamente parte do pressuposto de que o homem, em virtude tão-somente de sua condição biológica humana e independentemente de qualquer outra circunstância, é titular de direitos que devem ser reconhecidos e respeitados pelos seus semelhantes e pelo Estado.”[8]

Portanto, a positivação de direitos fundamentais foi responsável por trazer ao âmbito constitucional direitos antes vistos como de índole natural, cuja finalidade precípua era assegurar e promover, sobretudo, a dignidade da pessoa humana, mas não sob a forma posta pelo Estado, e sim já concebida pelo homem, ou por ser inerente à sua natureza, ou por decorrer da própria experiência humana absorvida pela razão.
Cumpre afirmar, assim, que os direitos naturais marcam, de certo modo, a irredutibilidade do ser humano, visto como um fim em si mesmo, concebendo valores irrenunciáveis agregados à sua natureza. E a sua incorporação pelos Estados reafirma essa noção, de modo que suas funções devem se convergir pela proteção do indivíduo e pela promoção de sua dignidade.





[1] Para um estudo do percurso histórico do direito natural e da filosofia do direito, ver KAUFMANN, Arthur. Filosofia do direito. Tradução de António Ulisses Cortês. Fundação Calouste Gulbenkian: Lisboa, 2004, p. 29-57. Sobre as doutrinas jusnaturalistas, conferir BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. Curso de filosofia do direito. 4.ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 227-236.
[2] Citado por BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 320.
[3] João Maurício Adeodato, por sua vez, salienta que, à semelhança do que ocorre no âmbito do juspositivismo, entre os jusnaturalistas há diferenças inconciliáveis sobre em que consistiria essa então denominada “natureza” suprapositiva. Didaticamente o autor enumera quatro grandes correntes jusnaturalistas: teológica, antropológica, democrática e de conteúdo variável. (ADEODATO, João Maurício. Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 189)
[4] BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. Curso de filosofia do direito. 4.ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 228
[5] Conforme Manoel Gonçalves Ferreira Filho, deve-se a Hugo Grócio a laicização do direito natural. Nas palavras do autor, “o jurista holandês entende decorrerem da natureza humana determinados direitos. Estes, portanto, não são criados, muitos menos outorgados pelo legislador. Tais direitos são identificados pela ‘reta razão’ que a eles chega, avaliando a ‘conveniência ou inconveniência’ dos mesmos em face da natureza razoável e sociável do ser humano” (Direitos humanos fundamentais. 11 ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 10). Neste mesmo sentido, afirma Barroso (op. cit., p.321, nota 33) que “o surgimento do jusnaturalismo moderno é usualmente associado à doutrina de Hugo Grócio (1583-1645), exposta em sua obra clássica De iure belli ac pacis, de 1625, considerada, também, precursora do direito internacional. Ao difundir a idéia de direito natural como aquele que poderia ser reconhecido como válido por todos os povos, porque fundado na razão, Grócio desvincula-o não só da vontade de Deus, como de sua própria existência”.
[6] KAUFMANN, Arthur. Filosofia do direito. Tradução de António Ulisses Cortês. Fundação Calouste Gulbenkian: Lisboa, 2004, p. 37.
[7] Como se observará no decorrer deste trabalho, a reaproximação da Ética ao Direito é uma das  mais importantes conquistas do direito contemporâneo, porquanto marca, precisamente, a superação do positivismo jurídico, lançando-se rumo ao pós-positivismo.         
[8] SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 103.

domingo, 26 de julho de 2020

Sobre substancialismo e procedimentalismo

            O papel do Poder Judiciário tem se modificado, sobretudo desde meados do século XX. Dentre as inúmeras discussões e interpretações para entender e definir o papel desse poder (e da própria Constituição) nas democracias contemporâneas, existem as que tratam das teorias susbtancialistas e procedimentalistas.
            Para Ana Paula de Barcellos (In: Neoconstitucionalismo, direitos fundamentais e controle das políticas públicas. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, n. 240, p. 87-88, abr./jun. 2005), o substancialismo
“sustenta que cabe à Constituição impor ao cenário político um conjunto de decisões valorativas que se consideram essenciais e consensuais. Essa primeira concepção pode ser descrita, por simplicidade, como substancialista. Um grupo importante de autores, no entanto, sustenta que apenas cabe à Constituição garantir o funcionamento adequado do sistema de participação democrático, ficando a cargo da maioria, em cada momento, histórico, a definição de seus valores e de suas opções políticas. Nenhuma geração poderia impor à seguinte suas próprias convicções materiais. Esta segunda forma de visualizar a Constituição pode ser designada de procedimentalismo.
                       Já Lenio Luiz Streck (In: Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2002.p. 141) sustenta que
“a corrente substancialista entende que, mais do que equilibrar e harmonizar os demais Poderes, o Judiciário deveria assumir o papel de um intérprete que põe em evidência, inclusive contra maiorias eventuais, a vontade geral implícita no direito positivo, especialmente nos textos constitucionais, e nos princípios selecionados como de valor permanente na sua cultura de origem e na do Ocidente. Coloca, pois, em xeque, o princípio da maioria, em favor da maioria fundante e constituinte da comunidade política.”
            O que se nota é uma diferenciação clara sobre o papel que a Constituição Federal deve assumir em determinado ordenamento jurídico, o que causa reflexos na própria atuação do Poder Judiciário, eis que cabe a ele assegurar a efetividade desse ordenamento, caso violado.  Pode-se dizer que a corrente procedimentalista privilegia as regras do jogo democrático, no sentido de que pressupõe uma esfera pública bem formada, na qual seus atores desfrutam de iguais condições de participação. Advoga, então, a tese de que cabe ao Judiciário assegurar que essas regras procedimentais sejam cumpridas.
            Já a corrente substancialista parece dar mais força ao Judiciário, pois coloca também em suas mãos a tarefa de assegurar direitos, inclusive e, sobretudo, os fundamentais. Mas é claro que algumas questões se tornam sensíveis quando passamos a analisar a realidade. Isso porque verificamos muitas vezes o exercício da jurisdição de modo ativista, aqui entendido como uma patologia da atividade jurisdicional, isto é, como um posicionamento voluntarista e casuísta, capaz de colocar em xeque a legitimidade do Poder Judiciário.
            Logo, muito mais do que definir se e qual das correntes podemos verificar no Brasil, precisamos é investigar e delimitar o núcleo legítimo de atuação do Poder Judiciário, assunto para o qual dedicaremos outra coluna deste Blog.

Sobre Judicialização da Política, leia AQUI.

Nairo Lopes