segunda-feira, 29 de dezembro de 2025

O cenário institucional contemporâneo e os incentivos ao ativismo judicial

O debate acerca do ativismo judicial no Brasil costuma ser conduzido de maneira reducionista, como se a ampliação do protagonismo do Judiciário decorresse exclusivamente de uma postura voluntarista das Cortes ou de um desvio deliberado da função jurisdicional. Essa leitura, contudo, ignora um aspecto central do problema: o ativismo judicial não nasce por geração espontânea, mas se desenvolve em contextos marcados por desequilíbrios estruturais entre os Poderes, déficits persistentes de responsabilização política e incapacidade dos canais majoritários de absorver e resolver conflitos de alta densidade institucional.

Nos últimos anos, o arranjo institucional brasileiro tem fornecido um terreno particularmente fértil para esse fenômeno. Observa-se um progressivo deslocamento de poder do Executivo para o Legislativo, sobretudo no controle da agenda orçamentária e na fragmentação da tomada de decisões políticas. Esse fortalecimento do Congresso, entretanto, não veio acompanhado de mecanismos eficazes de accountability eleitoral. Em um sistema proporcional com distritos amplos, elevado número de partidos e baixa rastreabilidade entre decisão parlamentar e voto do eleitor, forma-se um ambiente no qual o poder se expande sem contrapesos democráticos equivalentes.

A consequência direta desse arranjo é a produção de decisões politicamente relevantes, porém institucionalmente frágeis, frequentemente orientadas por cálculos estratégicos de curto prazo. Quando isso ocorre, o conflito político não desaparece; ele apenas migra de arena. Questões que deveriam ser enfrentadas no âmbito da deliberação democrática passam a ser remetidas ao Judiciário, seja por omissão legislativa, seja por escolhas normativas ambíguas ou defensivas.

Um exemplo emblemático dessa dinâmica encontra-se na atuação do Supremo Tribunal Federal em relação ao chamado orçamento secreto. A expansão do poder orçamentário do Congresso por meio de emendas parlamentares de baixa transparência e reduzida rastreabilidade gerou um cenário de evidente déficit de accountability. Diante da incapacidade do próprio Legislativo de impor limites a esse mecanismo, coube ao STF estabelecer parâmetros mínimos de publicidade e controle, em decisões proferidas no julgamento das ADPFs 850, 851, 854 e 1014. Ainda que fundamentada na defesa de princípios constitucionais como a publicidade e a moralidade administrativa, a intervenção judicial representou uma clara incursão em escolhas centrais do processo político-orçamentário.

Outro campo ilustrativo refere-se às respostas institucionais aos atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023. A ausência de uma reação legislativa clara, coordenada e consensual no tocante à responsabilização dos envolvidos deslocou para o Judiciário o protagonismo quase exclusivo no enfrentamento do problema. As ações penais conduzidas pelo STF e o debate subsequente acerca da dosimetria das penas evidenciam esse ponto. A tentativa recente de mitigar, por via legislativa, os efeitos dessas decisões — por meio do chamado “PL da Dosimetria” — reforça a percepção de que o Judiciário passou a atuar como instância residual de defesa da ordem constitucional, ainda que isso amplie seu papel político.

Também merece destaque a atuação judicial no enfrentamento da desinformação e dos ataques institucionais no ambiente digital. A instauração do Inquérito nº 4.781/DF (Inquérito das Fake News), com fundamento no art. 43 do Regimento Interno do STF, é sintomática desse cenário. Diante da insuficiência de respostas legislativas e administrativas, o Tribunal passou a determinar remoções de conteúdo, bloqueios de perfis e imposição de deveres diretos às plataformas digitais. Essa atuação foi posteriormente validada pelo próprio STF no julgamento da ADPF 572, sob o argumento da excepcionalidade do contexto e da necessidade de proteção da ordem democrática.

No mesmo sentido, as ações diretas de inconstitucionalidade que discutem a interpretação do art. 19 do Marco Civil da Internet (ADIs 7.174, 7.185 e 7.191) revelam um Judiciário chamado a fixar parâmetros normativos provisórios em razão da reiterada incapacidade do Legislativo de aprovar uma regulação estável sobre a responsabilidade das plataformas digitais — notadamente diante da paralisação do PL nº 2630/2020. Aqui, o ativismo judicial não se apresenta como escolha, mas como substituição funcional forçada.

Esses exemplos demonstram que o ativismo judicial, no Brasil contemporâneo, deve ser compreendido menos como causa e mais como sintoma de um sistema político disfuncional. À medida que o Legislativo concentra poder sem responsabilização proporcional e que o Executivo perde capacidade de coordenação, o Judiciário é progressivamente empurrado para o centro da arena pública, assumindo funções que não lhe pertencem originariamente.

O problema é que esse movimento tende a se autorreproduzir. Quanto mais o Judiciário ocupa espaço decisório, maior a percepção de hipertrofia institucional; quanto maior essa percepção, menor a disposição dos Poderes majoritários de reassumirem suas responsabilidades políticas. O resultado é um ciclo no qual o ativismo deixa de ser episódico e passa a integrar o funcionamento ordinário do sistema, com custos relevantes para a separação de Poderes e para a legitimidade democrática.

Em última análise, o enfrentamento do ativismo judicial não se resolve por meio da contenção isolada das Cortes, mas pela recomposição do equilíbrio institucional, com fortalecimento da responsabilidade política, da transparência decisória e da efetiva mediação democrática dos conflitos. Enquanto esse rearranjo não ocorrer, o ativismo judicial continuará sendo menos uma opção do Judiciário e mais uma consequência previsível do cenário institucional contemporâneo.

O cenário institucional contemporâneo e os incentivos ao ativismo judicial

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